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Por Paulo Henrique Cremoneze*
Recentemente ocorreram chuvas especialmente intensas em Santos e região. Segundo se apurou, as maiores nos últimos cinquenta anos. Evidentemente que a elas se seguiram alagamentos, enchentes e danos.
Pois bem.
Faz tempo que defendo que as chuvas de verão são fenômenos conhecidos, rotineiros, comuns, portanto, previsíveis e esperados. Se não são sempre resistíveis, ao menos não podem ser ignorados.
Sendo assim, não parece correto alguém alegar caso fortuito ou força maior para escapar de responsabilidades.
Mais de uma vez me posicionei que os governos estaduais e municipais são responsáveis por inação. Sabem que as chuvas ocorrem, que se repetem, ano após ano, e nada fazem para impedir ou amenizar enchentes e alagamentos.
A fortuidade, portanto, é argumento desordenado, para não dizer errado.
Alguém então me perguntará: e neste caso específico, em que se constatou a maior intensidade pluviométrica dos últimos cinquenta anos?
O Direito é dialético por excelência e não costuma ter respostas fáceis. A resposta que considero correta é: depende.
A Administração Pública não pode alegar fortuidade, pois a intensidade é menos importante, para aferição de sua responsabilidade, do que a contumácia do fenômeno.
Terminais de cargas, personagens ilustres de Santos e região, também não.
Outros empreendedores ou atores econômicos poderão ou não se beneficiar da fortuidade a depender das suas atuações e do tipo de risco que assumem.
Fiquemos apenas no exemplo dos terminais de cargas, operadores portuários.
Chuvas, especialmente intensas ou não, principalmente nos meses de verão, não podem jamais excluir suas responsabilidades por danos nas cargas confiadas em depósito.
São riscos da atividade. Os terminais devem estar preparados para isso. A alegação de fortuidade é sem sentido e carece de ancoragem jurídica e moral.
Felizmente, as seguradoras dos terminais não têm se furtado ao reconhecimento disso.
Curiosamente, trabalho em um caso em que a seguradora detém apólice com um terminal importante e, ao mesmo tempo, apólices de cargas que foram danadas em outro terminal.
Situações diferentes dentro de um mesmo contexto-fático envolvendo congêneres.
Justamente por não reconhecer a fortuidade no evento, a seguradora, agindo em boa-fé, honrando compromissos e devolvendo ao seio social todo o bem que dele recebe, houve por bem indenizar os donos de cargas depositadas no terminal segurado e buscar o ressarcimento das indenizações pagas aos donos de cargas depositados noutro terminal. Ressarcimento que é importantíssimo para a legítima proteção dos direitos de todo os segurados (princípio do mutualismo) e, ainda, os da sociedade, haja vista a marcante função social do contrato de seguro.
O fenômeno climático é o mesmo, de tal sorte que não se pode imputar responsabilidade a um e exonerar a de outro.
Insisto: terminais de cargas não podem alegar chuvas, mesmo que muito intensas, para escapar de deveres essencialmente objetivos.
Considero ser mais do que razoável exigir do terminal de cargas a devida responsabilidade pelos danos derivados do alagamento.
Além da Lex Ars, tem-se a favor da imputação de responsabilidade importantes critérios jurídicos e principiológicos como: a) descumprimento de obrigação de resultado; b) direito do credor insatisfeito; c) dever geral de cautela; d) cláusula de incolumidade e f) dinâmica da sub-rogação e da mutualidade do seguro.
Nenhum desses critérios pode ser esvaziado por uma alegação simplista de fortuidade.
Irrelevante o fato de as chuvas terem sido as mais intensas dos últimos anos, pois isso é risco próprio da atividade, marcada com o selo de atividade de ordem pública, serviço continuado.
Querendo, poderá o terminal demandar contra a Administração que, mesmo sabendo da recorrência das chuvas de verão, praticamente nada faz para evitar ou minimizar seus efeitos deletérios.
Em uma sociedade de riscos como é a atual, todos os protagonistas da economia, agentes públicos e provados, devem assumir responsabilidades e arcar com seus respectivos deveres.
Disso depende a saúde social.
A tentação adâmica de terceirizar a culpa não é mais tolerável nem compreensível. Não se põe nas costas de São Pedro os resultados da falta de sistemas de drenagem e de contenção de águas, ausência de diques, de bombas hidráulicas, de muros elevados, enfim, de tudo aquilo que a engenharia e a tecnologia atuais oferecem aos que exercem atividades de risco. O lucro só é honesto e digno quando precedido de investimentos em segurança. A carência destes contamina a legitimidade daquele.
A fortuidade não é um coringa de jogo de cartas. É um conceito que exige muito critério e escrúpulo, com aplicação atenta às circunstâncias particulares dos envolvidos e dos fatos. O que pode ser fortuito em um caso, certamente não será em outro.
Advogado especialista em Direito do Seguro do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado, especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca, membro da ANSP e autor jurídico.